sábado, janeiro 14, 2006

Sobrevivência

Em 64, ano gris na história brasileira, com 6 anos, entrei oficialmente no mundo escolar. Foi uma entrada complicada e difícil, por vários motivos: primeiro, porque eu nao tinha participado do Jardim de Infância, período educativo que facilitava o desenvolvimento de habilidades motoras, afetivas e cognitivas, e que era organizado de forma a preparar adequadamente o aluno para o letramento; segundo, porque eu nao tinha completado 7 anos e, claramente, nao possuía a maturidade suficiente para enfrentar este momento; terceiro, porque me afastaram bruscamente de meu contexto e de meus irmaos, sem nenhuma preparaçao para isso; e, quarto, porque eu acreditava que estudaria no mesmo colégio deles - Colégio Cícero Barreto - e, quando soube que nao seria assim, e que minha entrada tinha sido vetada por nao ter cumprido 7 anos, fiquei verde de decepçao e de impotência. Foi bastante traumático! Um sonho infantil desfeito! Naquela época, fui possuída por um sentimento de desamparo. Meus medos se agigantaram e me fizeram mais pequena ainda. Era como se me desligassem do seio familiar e me obrigassem a abrir minha cabeça e meu coraçao para o mundo lá fora. A fórceps!
Soube que iria para outro colégio poucos dias antes da data marcada para o início das classes. A explicaçao recebida e repetida inúmeras vezes era a de que nao podia cursar a 1ª série, porque nao tinha idade cronológica para tal. Nada mais desolador que nao ter idade para acompanhar os irmaos na grande aventura educativa! Era assim que eu sentia e percebia os fatos daquela época.
Segundo palavras de minha mae, fui salva por minhas tias, professoras de outra escola que ficava a umas dez quadras da minha casa. Através delas, fui aceita na Escola Joao Belém. Certamente minha mae ficou feliz com a notícia. Eu, nao! Eu continuava triste, desiludida e com um medo espantoso. Acho que quis voltar para o útero e esquecer a dureza do momento.
Os primeiros dias na escola foram muito sofridos. Eu chorava e tinha cólicas continuamente. Sentia um medo atroz, que paralisava minha garganta e meus movimentos. Nao conseguia falar quando me perguntavam algo, e nao fazia absolutamente nada das tarefas de classe. Estava literalmente paralisada. Entre outras coisas, acho que um dos motivos desta paralisia foi iniciar o ano sem conhecer meus colegas, professores e o colégio - como acontece com inúmeras crianças nesta primeira experiência. Enquanto a grande maioria já se conhecia do ano anterior - porque cursaram o Jardim de Infância - eu, por nao ter participado deste período educativo e socializante, iniciei o ano escolar sem conhecer ninguém e sem estar dentro da camaradagem que percebia entre eles. Eu ficava de fora...ou me colocava de fora. O que eu queria era estar na escola de meus irmaos, e nao com aqueles desconhecidos, em uma escola desconhecida e distante.
Além da dificuldade de estabelecer novas relaçoes, entrei no colégio sem ter aprendido ou praticado coisas importantes, como recortar nas linhas que delimitavam os desenhos e pintar dentro destas linhas. Em geral, nao estava preparada ou suficientemente desenvolvida para percorrer os caminhos educativos propostos naquele momento...e nem para estar separada dos "guris". Naquela época, cada nível escolar tinha letras associadas. Exemplo: existia a 1ª série A, a 1ª série B e a 1ª série C. Evidentemente, a primeira série A era para os mais prontos, ou mais bem preparados - motora, cognitiva e afetivamente.
No primeiro dia de aula, fiz um teste para saber em que letra começaria. Lembro perfeitamente daquele momento: me deram uns desenhos para recortar... e recortei pessimamente, passando por cima das linhas, de um lado para outro, ziguezagueando; depois, me deram uns desenhos em branco e lápis de cor. Outra vez, nao fiz bem. Pintei fora das linhas. Resultado: fui para a 1ª série B. Com toda a amabilidade própria da infância, os alunos da 1ª série A nos chamavam de burros. Burros eram os que tinham dificuldades para aprender. Neste sentido, ir para as séries B tinha um peso muito forte. Era necessário levar a carga da incompetência, ou da impossibilidade - naturalmente associada à letra.
Na metade do ano, minha professora da 1ª série B concluiu que eu ainda nao tinha desenvolvido bem a motricidade e nem o emocional - de acordo com o que estava previsto para aquele momento escolar -, mas que tinha capacidade cognitiva para avançar mais rapidamente. Deste modo, fui para a 1ª série A. Medo novamente! Quando começava a me habituar com os colegas, me colocaram em uma turma diferente. Outro choque! Penso que o que me fez sobreviver àquele ano foi a expectativa da promessa de minha mae: a de levar-me para o colégio onde estudavam meus irmaos.
Com todas as dificuldades que tive, até hoje nao sei explicar como consegui a classificaçao final que aparecia no boletim: 1º lugar! Por esta classificaçao, recebi presentes da minha professora e muitos abraços da família e das outras professoras. Acho que isso mudou todo o rumo da minha história. Com esta classificaçao, e com minha suposta adaptaçao - enfim! -, as professoras aconselharam minha mae a nao promover a minha transferência de colégio. E, deste modo, acabei ficando no colégio Joao Belém até o final do primário, separada de meus irmaos, mas já mais confiante em minhas capacidades. Aí, deixei de ser a extensao deles. De repente, um ano mais tarde, já nao queria sair daquele colégio. Já podia sobreviver sem estudar no colégio de meus irmaos. E, posso afirmar, esperava ansiosa o seguinte ano letivo.
Considerando as notas que recebi, fui uma ótima aluna durante todo o primário; e, considerando meu comportamento, acho que nao fui uma aluna muito fácil. Tive avanços cognitivos bem mais significativos que avanços emocionais. Sempre me pergunto se, no caso de eu ter estudado no Cícero Barreto e de ter meus irmaos por perto, meus caminhos e movimentos teriam sido diferentes. Nunca saberei a resposta. Estudar ao lado de meus irmaos talvez tivesse sido mais tranquilo e seguro; e, possivelmente, estudar longe deles, com as dificuldades citadas, talvez tenha acentuado em mim a necessidade de sobrevivência e de adaptaçao - estas capacidades que me impulsionam a seguir quando aparecem dificuldades em meus caminhos e movimentos.
Deste modo, estudar no Colégio Joao Belém me fez desenvolver algumas características que permanecem até hoje.

7 comentários:

Anónimo disse...

Thelma, tu me comove. bjs

Ana disse...

Me fizestes voltar no tempo... E senti uma saudade enorme!

Anónimo disse...

Thelma, acho que não te conheci, mas você deve ter sido colega de uma de minhas primas em Santa Maria, pelo nome dos colégios.
Joyce, Jane, Valéria e Janise Velazquez, você conheceu uma delas?
Vim no seu blog pelo link do blog da Ana.

Anónimo disse...

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Anónimo disse...

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