Em 64, ano gris na história brasileira, com 6 anos, entrei oficialmente no mundo escolar. Foi uma entrada complicada e difícil, por vários motivos: primeiro, porque eu nao tinha participado do Jardim de Infância, período educativo que facilitava o desenvolvimento de habilidades motoras, afetivas e cognitivas, e que era organizado de forma a preparar adequadamente o aluno para o letramento; segundo, porque eu nao tinha completado 7 anos e, claramente, nao possuía a maturidade suficiente para enfrentar este momento; terceiro, porque me afastaram bruscamente de meu contexto e de meus irmaos, sem nenhuma preparaçao para isso; e, quarto, porque eu acreditava que estudaria no mesmo colégio deles - Colégio Cícero Barreto - e, quando soube que nao seria assim, e que minha entrada tinha sido vetada por nao ter cumprido 7 anos, fiquei verde de decepçao e de impotência. Foi bastante traumático! Um sonho infantil desfeito! Naquela época, fui possuída por um sentimento de desamparo. Meus medos se agigantaram e me fizeram mais pequena ainda. Era como se me desligassem do seio familiar e me obrigassem a abrir minha cabeça e meu coraçao para o mundo lá fora. A fórceps!
Soube que iria para outro colégio poucos dias antes da data marcada para o início das classes. A explicaçao recebida e repetida inúmeras vezes era a de que nao podia cursar a 1ª série, porque nao tinha idade cronológica para tal. Nada mais desolador que nao ter idade para acompanhar os irmaos na grande aventura educativa! Era assim que eu sentia e percebia os fatos daquela época.
Segundo palavras de minha mae, fui salva por minhas tias, professoras de outra escola que ficava a umas dez quadras da minha casa. Através delas, fui aceita na Escola Joao Belém. Certamente minha mae ficou feliz com a notícia. Eu, nao! Eu continuava triste, desiludida e com um medo espantoso. Acho que quis voltar para o útero e esquecer a dureza do momento.
Os primeiros dias na escola foram muito sofridos. Eu chorava e tinha cólicas continuamente. Sentia um medo atroz, que paralisava minha garganta e meus movimentos. Nao conseguia falar quando me perguntavam algo, e nao fazia absolutamente nada das tarefas de classe. Estava literalmente paralisada. Entre outras coisas, acho que um dos motivos desta paralisia foi iniciar o ano sem conhecer meus colegas, professores e o colégio - como acontece com inúmeras crianças nesta primeira experiência. Enquanto a grande maioria já se conhecia do ano anterior - porque cursaram o Jardim de Infância - eu, por nao ter participado deste período educativo e socializante, iniciei o ano escolar sem conhecer ninguém e sem estar dentro da camaradagem que percebia entre eles. Eu ficava de fora...ou me colocava de fora. O que eu queria era estar na escola de meus irmaos, e nao com aqueles desconhecidos, em uma escola desconhecida e distante.
Além da dificuldade de estabelecer novas relaçoes, entrei no colégio sem ter aprendido ou praticado coisas importantes, como recortar nas linhas que delimitavam os desenhos e pintar dentro destas linhas. Em geral, nao estava preparada ou suficientemente desenvolvida para percorrer os caminhos educativos propostos naquele momento...e nem para estar separada dos "guris". Naquela época, cada nível escolar tinha letras associadas. Exemplo: existia a 1ª série A, a 1ª série B e a 1ª série C. Evidentemente, a primeira série A era para os mais prontos, ou mais bem preparados - motora, cognitiva e afetivamente.
No primeiro dia de aula, fiz um teste para saber em que letra começaria. Lembro perfeitamente daquele momento: me deram uns desenhos para recortar... e recortei pessimamente, passando por cima das linhas, de um lado para outro, ziguezagueando; depois, me deram uns desenhos em branco e lápis de cor. Outra vez, nao fiz bem. Pintei fora das linhas. Resultado: fui para a 1ª série B. Com toda a amabilidade própria da infância, os alunos da 1ª série A nos chamavam de burros. Burros eram os que tinham dificuldades para aprender. Neste sentido, ir para as séries B tinha um peso muito forte. Era necessário levar a carga da incompetência, ou da impossibilidade - naturalmente associada à letra.
Na metade do ano, minha professora da 1ª série B concluiu que eu ainda nao tinha desenvolvido bem a motricidade e nem o emocional - de acordo com o que estava previsto para aquele momento escolar -, mas que tinha capacidade cognitiva para avançar mais rapidamente. Deste modo, fui para a 1ª série A. Medo novamente! Quando começava a me habituar com os colegas, me colocaram em uma turma diferente. Outro choque! Penso que o que me fez sobreviver àquele ano foi a expectativa da promessa de minha mae: a de levar-me para o colégio onde estudavam meus irmaos.
Com todas as dificuldades que tive, até hoje nao sei explicar como consegui a classificaçao final que aparecia no boletim: 1º lugar! Por esta classificaçao, recebi presentes da minha professora e muitos abraços da família e das outras professoras. Acho que isso mudou todo o rumo da minha história. Com esta classificaçao, e com minha suposta adaptaçao - enfim! -, as professoras aconselharam minha mae a nao promover a minha transferência de colégio. E, deste modo, acabei ficando no colégio Joao Belém até o final do primário, separada de meus irmaos, mas já mais confiante em minhas capacidades. Aí, deixei de ser a extensao deles. De repente, um ano mais tarde, já nao queria sair daquele colégio. Já podia sobreviver sem estudar no colégio de meus irmaos. E, posso afirmar, esperava ansiosa o seguinte ano letivo.
Considerando as notas que recebi, fui uma ótima aluna durante todo o primário; e, considerando meu comportamento, acho que nao fui uma aluna muito fácil. Tive avanços cognitivos bem mais significativos que avanços emocionais. Sempre me pergunto se, no caso de eu ter estudado no Cícero Barreto e de ter meus irmaos por perto, meus caminhos e movimentos teriam sido diferentes. Nunca saberei a resposta. Estudar ao lado de meus irmaos talvez tivesse sido mais tranquilo e seguro; e, possivelmente, estudar longe deles, com as dificuldades citadas, talvez tenha acentuado em mim a necessidade de sobrevivência e de adaptaçao - estas capacidades que me impulsionam a seguir quando aparecem dificuldades em meus caminhos e movimentos.
Deste modo, estudar no Colégio Joao Belém me fez desenvolver algumas características que permanecem até hoje.
sábado, janeiro 14, 2006
sexta-feira, janeiro 13, 2006
As pandorgas
Na época do nosso campinho, onde jogávamos futebol, andávamos de bicicleta, conversávamos, jogávamos bola de gude...etc., uma das atividades que mais nos encantava era a de soltar pandorgas. Estas eram de diferentes cores, com roncadores e rabos variados. Era impressionante manter a pandorga no ar e observar sua dança tranquila, quando ela estava bem feita; ou seu rip-róp, quando ela estava meia-boca. Minha mae era a mentora e criadora das nossas pandorgas. Uma artista! Nunca entendi como ela aprendeu tao bem este ofício - ou este esporte. Talvez de seus irmaos mais velhos. Ela era super criativa com as cores. Embora as formas fossem sempre as mesmas, o resultado final nos deixava surpresos e entusiasmados. Nunca tivemos problemas com a simetria de nossas pandorgas - aspecto mais importante e difícil desta construçao -, e isso fazia com que a levantássemos com mais facilidade. Só dependíamos da força do vento. Lembro de olhar para minha mae em seu processo de criaçao, e de perceber sua concentraçao. Era um momento importante, para ela e para nós. Até hoje posso sentir aquela mistura de cheiros - da cola no papel, da vareta, dos fios que uniam as varetas e da concentraçao de minha mae. Um cheiro inesquecível! A criaçao da pandorga exigia habilidade e concentraçao, porque um pequeno erro podia destruir o sonho e a alegria antecipada que sentíamos. Ficávamos em suspense. Quando o processo se aproximava do final, e já nao aguentávamos mais, começávamos a rasgar os lençóis velhos e furados, para fazer a cola da pandorga. Era o último, após o carretel de linha. Depois, a corrida ansiosa de todos para o campinho. Normalmente, alguns amigos já sabiam do fato e nos acompanhavam na ansiedade. A expectativa era de todos. E nao havia nada mais emocionante e bonito que ver a nossa pandorga dando as primeiras serpenteadas, subindo devagarinho em direçao ao céu azul. Era emoçao pura! Impossível esquecer estes momentos tao intensos e agradáveis.
Com muita alegria no coraçao, percebo que nossa infância foi colorida, entre outras coisas, pelas incríveis pandorgas que esta mae-artista fazia para nós, seus amados filhos.
Com muita alegria no coraçao, percebo que nossa infância foi colorida, entre outras coisas, pelas incríveis pandorgas que esta mae-artista fazia para nós, seus amados filhos.
terça-feira, janeiro 10, 2006
Depois, o futebol no campinho...
Voltando ao tempo de brincar de bonecas com Bega - logo depois de aprender a caminhar, correr e de ter as idéias iniciais sobre o mundo, quando passávamos longas horas de comadres -, o que realmente quero expressar é que ela era uma amiguinha supimpa e que nos divertíamos muito. Maravilhoso mundo da fantasia! Criávamos famílias e situaçoes familiares incríveis.
Do outro lado de sua casa, havia um terreno baldio - que ficava numa esquina. A molecada da redondeza convergia para este terreno - para jogar futebol, bolinha de gude, andar de bicicleta, soltar pandorga, ou simplesmente conversar. Mas, sem dúvidas, eram as partidas de futebol que reuniam mais gente. Quando falavam em "o campinho", todos sabiam que era aquele campo diminuto que, nos anos de nossa infância, parecia um campo de futebol autêntico.
Enquanto os guris brincavam no campinho, Bega e eu brincávamos no pátio de casa...até um certo momento ou uma certa idade. Pouco a pouco, em nosso processo natural de abertura ao universo, fomos ouvindo e registrando a animaçao e os gritos que vinham do campinho. Era a torcida empolgada. De repente, aqueles jogos passaram a nos interessar. Deixamos as bonecas para outros momentos e partimos para a integraçao futebolística com os guris, no terrenos baldio. Obviamente, ficamos surpresas com a rejeiçao deles. Nao entendíamos o desprezo e a agressividade que respondiam às nossas pretensoes de fazer parte das brincadeiras recém-descobertas e das equipes de futebol. Nao desistimos. Insistimos tanto que eles nos aceitaram....isso era o que acreditávamos. Ainda nao sabíamos que a prepotência masculina nao perderia esta oportunidade para demonstrar a superioridade da raça, e que este seria um exercício constante dos meninos contra as meninas. Naquela época, começamos a ter as primeiras duras liçoes sobre algumas diferenças abismais entre homens e mulheres, especialmente no que se refere à colaboraçao.
Maquiavelicamente, para que desistíssemos de nossa veia futebolística recém-despertada, eles nos colocaram no gol. E, um após o outro, e dia após dia, faziam a demonstraçao da força de seus chutes e de sua capacidade impressionante de fazer gols....em nós, goleiras - expostas à força bruta e ignorante dos meninos. Queriam nos intimidar, amedrontar e ridicularizar. Os super homens! O que eles nao imaginavam - e talvez nem nós - é que éramos mais habilidosas e persistentes que eles, e que, a cada revés sofrido - ou a cada gol -, aumentava a nossa ânsia de melhorar. Provamos nossa competêcia, elasticidade, agilidade e inteligência, na prática. Como deve ser! Sem maiores explicaçoes. Nossa açao e nossos sorrisos gritavam o nosso talento. Nao é necessário dizer que nos tornamos as melhores goleiras da redondeza. Tempos depois, eles imploravam para que nós defendêssemos o time. Como é bom lembrar disso!!!
Rio comigo mesma por estas lembranças. Gosto de rever as cenas deste filme.
Anos mais tarde, já adulta, residindo fora de Santa Maria, ao visitar a terrinha, costumava encontrar, casualmente, alguns daqueles meninos. Eles me saudavam com alegria e entusiasmo. Sei que eles aceitaram e reconheceram meu esforço e talento como goleira. Nao deixei dúvidas.
Bega também era boa. Ela sempre foi uma companheira forte e valente na luta para conquistar espaço no campinho - nao só nos jogos de futebol. Também tínhamos que lutar para jogar bolitas, soltar andorgas, trocar figurinhas, andar de bicicletas... Foi duro, mas acho que alcançamos nossos objetivos....com muito esforço, porque nao nos deixavam barato e nao nos davam nada gratuitamente. O coleguismo - esta postura masculina - sucumbiu ao nosso companheirismo. Bega e eu bordamos este triunfo em nossas histórias de vida, com cores bem vivas. Muito bom poder contar estes momentos!
Do outro lado de sua casa, havia um terreno baldio - que ficava numa esquina. A molecada da redondeza convergia para este terreno - para jogar futebol, bolinha de gude, andar de bicicleta, soltar pandorga, ou simplesmente conversar. Mas, sem dúvidas, eram as partidas de futebol que reuniam mais gente. Quando falavam em "o campinho", todos sabiam que era aquele campo diminuto que, nos anos de nossa infância, parecia um campo de futebol autêntico.
Enquanto os guris brincavam no campinho, Bega e eu brincávamos no pátio de casa...até um certo momento ou uma certa idade. Pouco a pouco, em nosso processo natural de abertura ao universo, fomos ouvindo e registrando a animaçao e os gritos que vinham do campinho. Era a torcida empolgada. De repente, aqueles jogos passaram a nos interessar. Deixamos as bonecas para outros momentos e partimos para a integraçao futebolística com os guris, no terrenos baldio. Obviamente, ficamos surpresas com a rejeiçao deles. Nao entendíamos o desprezo e a agressividade que respondiam às nossas pretensoes de fazer parte das brincadeiras recém-descobertas e das equipes de futebol. Nao desistimos. Insistimos tanto que eles nos aceitaram....isso era o que acreditávamos. Ainda nao sabíamos que a prepotência masculina nao perderia esta oportunidade para demonstrar a superioridade da raça, e que este seria um exercício constante dos meninos contra as meninas. Naquela época, começamos a ter as primeiras duras liçoes sobre algumas diferenças abismais entre homens e mulheres, especialmente no que se refere à colaboraçao.
Maquiavelicamente, para que desistíssemos de nossa veia futebolística recém-despertada, eles nos colocaram no gol. E, um após o outro, e dia após dia, faziam a demonstraçao da força de seus chutes e de sua capacidade impressionante de fazer gols....em nós, goleiras - expostas à força bruta e ignorante dos meninos. Queriam nos intimidar, amedrontar e ridicularizar. Os super homens! O que eles nao imaginavam - e talvez nem nós - é que éramos mais habilidosas e persistentes que eles, e que, a cada revés sofrido - ou a cada gol -, aumentava a nossa ânsia de melhorar. Provamos nossa competêcia, elasticidade, agilidade e inteligência, na prática. Como deve ser! Sem maiores explicaçoes. Nossa açao e nossos sorrisos gritavam o nosso talento. Nao é necessário dizer que nos tornamos as melhores goleiras da redondeza. Tempos depois, eles imploravam para que nós defendêssemos o time. Como é bom lembrar disso!!!
Rio comigo mesma por estas lembranças. Gosto de rever as cenas deste filme.
Anos mais tarde, já adulta, residindo fora de Santa Maria, ao visitar a terrinha, costumava encontrar, casualmente, alguns daqueles meninos. Eles me saudavam com alegria e entusiasmo. Sei que eles aceitaram e reconheceram meu esforço e talento como goleira. Nao deixei dúvidas.
Bega também era boa. Ela sempre foi uma companheira forte e valente na luta para conquistar espaço no campinho - nao só nos jogos de futebol. Também tínhamos que lutar para jogar bolitas, soltar andorgas, trocar figurinhas, andar de bicicletas... Foi duro, mas acho que alcançamos nossos objetivos....com muito esforço, porque nao nos deixavam barato e nao nos davam nada gratuitamente. O coleguismo - esta postura masculina - sucumbiu ao nosso companheirismo. Bega e eu bordamos este triunfo em nossas histórias de vida, com cores bem vivas. Muito bom poder contar estes momentos!
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