Quando vim morar na Espanha, nao tinha bolsa de estudos e as mensalidades da universidade onde estudava eram muito caras. Entao, fui fazer o que a maioria dos
sudacas - apelido pejorativo com que os espanhóis chamam os originários da América do Sul - fazem, que é cuidar de pessoas mais velhas ou de crianças.
Desta maneira, conheci Itziar e Begoña, duas irmas de mais de 80 anos. Com elas, convivi 5 anos. Uma experiência única!
Quando as conheci, elas ainda moravam em seu apartamento, no centro de Bilbao. Era um apartamento enorme, onde se percebia a situaçao privilegiada das duas senhoras.
Itziar, a mais jovem, era a dona da casa. Aí, viveu com seu marido - já falecido - e seus dois filhos. Bego, 4 anos mais velha que Itziar, ficou viúva cedo e foi morar com sua irma, seu cunhado e seus sobrinhos - quando todos ainda viviam juntos.
A mais jovem das irmas, com menos de 70 anos, começou a apresentar quadros de desorientaçao e de esquecimentos. Diagnóstico: Alzheimer. Nesta época, elas já viviam sós. Mais tarde, os filhos - que já tinham casado e que viviam em suas próprias casas - sentiram a necessidade de contratar empregadas para cuidar mais especialmente das duas. Éramos 4 empregadas: uma, para a manha; outra, para a tarde; outra, para a noite; e, outra, para os finais de semana. Eu era a dos finais de semana. Como tive aulas nos dois primeiros anos do curso, ficava com a semana livre para assistir às aulas e para estudar, e cuidava das velhinhas nos finais de semana. Inicialmente, foi duro para mim e duro para elas, por distintos motivos. Para mim, foi difícil porque nunca tinha feito um trabalho assim, porque nao tinha finais de semana livres - quando todos os meus colegas de curso passeavam de um lugar para outro na Espanha de Cervantes - e porque eu tinha uma enorme responsabilidade com o estado das duas. Morria de medo que acontecesse alguma coisa grave quando eu estivesse com elas. Além de algumas quedas, que me deixavam horrorizada, nunca houve nada grave.
Para elas, foi difícil porque elas se sentiam inseguras com uma pessoa desconhecida, estrangeira, que nao falava bem o idioma. Para quem sofre este tipo de enfermidade, com importantes desorientaçoes, minhas características pessoais nao eram muito tranquilizadoras. Eu sentia a insegurança delas nos primeiros dias, e tentava tranquilizá-las.
Lembro que no primeiro dia que fui trabalhar, quando estava sendo apresentada às duas, Bego me olhou dos pés à cabeça, bem devagarinho. Quando seus olhos alcançaram a minha cabeça, e notaram meus cabelos crespos, soltos e desalinhados, sem nenhum
laquê, ela afirmou: "Esqueceste de pentear os cabelos! Se queres, pega meu pente que está no banheiro". Ao mesmo tempo em que ela enviava uma mensagem de reprovaçao sobre a minha aparência, oferecia gentilmente sua ajuda. Inicialmente, ela era autoritária e estava sempre reclamando de algo, com um estilo de marquesa inconfundível que conserva até hoje, mas, ao sorrir, era impressionantemente simpática e bonita! E ela continua com este sorriso!
Itziar era reservada, calada e encantadora. Sempre foi uma mulher simples e dedicada aos outros. Em sua casa, cuidou da sogra, dos cunhados, do marido, das irmas e de todos que necessitaram dela. Era uma mulher religiosa e que sentia paz rezando por ela e pela humanidade. Ela gostava de nao chamar a atençao dos demais, e dizia que era feliz porque nao era bonita e nem feia, nao era alta e nem baixa, nao era morena e nem loira...
Desta maneira, ficamos um ano nos acompanhando em finais de semana. Em geral, foi um período tranquilo. A empregada que ficava à noite, nos dias de semana, dizia que Bego cantava e gritava toda a noite. A verdade é que ela nunca gritou quando eu estava com ela. Talvez porque eu a pusesse na cama como se fosse uma criança. Eu a beijava, abraçava, ficava um bom tempo ao seu lado, até ela começar a relaxar e a dormir. Quando eu ia para o outro quarto, onde dormia com Itziar, dizia a ela que podia me chamar a qualquer hora e que eu deixaria a luz do corredor acendida para que ela nao tivesse medo. Com isso, ela dormia a noite toda, invariavelmente.
Itziar sempre dormia bem. Na verdade, ela preferia ficar na cama que levantada. Na hora de levantá-la, ela resistia.
Minhas atividades eram: preparar as refeiçoes, separar os remédios e dar a elas nos horários estabelecidos, dar banho, vestir e desvestir as duas, arrumar as camas, colocar música, ler, rezar com elas - tive que aprender, imediatamente, o Pai Nosso e a Ave Maria em espanhol.
Sentia nitidamente o afeto crescente que me unia às duas. Talvez eu projetasse nelas o amor que sentia por minha mae e por minhas tias - todas falecidas. Este parentesco novo nao era de sangue, e sim de sentimento - como muitos que acontecem na vida. Se uma delas tinha febre, ou diarréia, ou dor de cabeça...eu ficava super mal, aflita, torcendo para que melhorasse logo.
No final deste primeiro ano, fui ao Brasil. Nao podia tirar férias por quase dois meses e resolvi pedir demissao. Foi difícil para mim dizer que ia deixá-las. No momento em que pedi a demissao, soube que os filhos tinham decidido levá-las a um centro geriátrico. Bateu uma tristeza enorme em mim. Nao podia entender que elas saíssem da casa onde viveram mais de 40 anos e fossem para um centro geriátrico. Questionei muito esta mudança, internamente. Procurei conhecer e entender melhor esta atitude massiva dos espanhóis de colocar os pais nos centros geriátricos, porque, aqui, é o que ocorre com a grande maioria dos casos. Pensava: este é um fenômeno cultural? Se os filhos que trabalham e que têm outros afazeres internam os pais em centros geriátricos, isso caracteriza um traço cultural? Sei lá...todos me diziam: "é o normal", "vai ser melhor para elas". E eu me perguntava onde estava a normalidade e por que seria melhor para elas? Eu só conseguia pensar nas referências brasileiras que eu tinha, onde, normalmente, cuidamos de nossos entes queridos até o final. Ficou um conflito dentro de mim, porque eu conhecia os filhos de Itziar e sabia/sentia que eram boas pessoas, cuja intençao era dar o melhor àquelas senhoras. Eles realmente acreditavam que era isso que devia ser feito. O filho, mais racional, tomou as medidas necessárias para fazer o translado delas; a filha, mais sensível ao problema da mae e da tia, sofreu muito com esta separaçao. Ele estava convencido de que se nao podiam ocupar-se integralmente da mae e da tia, elas estariam melhor cuidadas com um médico de plantao e com uma estrutura de enfermeiras e psicólogas preparadas para esta enfermidade.
Fui para o Brasil com o coraçao partido. Pensava nelas diariamente. E rezava para que elas estivessem tranquilas e serenas. Já as conhecia bem e imaginava quais seriam suas reaçoes. E, efetivamente, aconteceu o que eu previa: se elas já sofriam de desorientaçao, tirá-las do seu lar foi a gota d`água. Elas pioraram muito. Nao se acostumavam com aquele lugar.
Na primeira semana depois de meu regresso do Brasil, quando as aulas já tinham recomeçado, a filha de Itziar - que é uma pessoa que eu gosto muito e que hoje é uma boa amiga minha - me chamou ao telefone. Disse que sua mae tinha caído, que havia rompido os quadris e que seria operada. Perguntou se eu podia acompanhá-la no hospital. Corri para lá. Ficamos 15 dias no hospital. A volta para o centro geriátrico foi outro período complicado. Voltei com ela para este lugar e, lá, reencontrei Bego. A partir deste dia, fiquei acompanhando as duas no tal centro. Eu ia pela manhâ, limpava os olhos, as bocas, as orelhas, observava suas temperaturas, passava cremes, conversava com elas, lia jornais, colocava música e dava o almoço para as duas - que já vinha pronto, numa bandeja. Depois do almoço, colocava as duas para dormir, e ia para casa. Assim permanecemos durante 4 anos. Vi muita coisa acontecer neste lugar. Ali, por mais que houvesse gente preparada, nao era o lar delas. E eu me perguntava continuamente onde estava o preparo daquela gente? O tratamento dado aos velhinhos carecia de carinho, de afetuosidade e, muitas vezes, de respeito. Faltava sentimento e coraçao nas cuidadoras oficiais, que faziam suas tarefas automaticamente. É óbvio que nao se pode generalizar e que havia algumas boas exceçoes. Mas, na maioria das vezes, os velhinhos eram tratados como se fossem um móvel a mais da residência - isso, sim, era de primeira. As instalaçoes deste centro geriátrico sao modernísimas, mas tudo é muito frio, carecendo de calor humano.
Hoje, percebo que nao existe o afeto que esta enfermidade exige, e sim o automatismo e a rapidez. As cuidadoras têm que fazer tudo correndo, porque estao em número reduzido para a quantidade de gente. Como todas as empresas, as residências também economizam dinheiro onde deveriam ser mais abertos: na quantidade e na qualificaçao do pessoal. Meu sentimento é o de que, além da prisao cerebral causada pela enfermidade, os pacientes se tornam prisioneiros do centro geriátrico. Eles perdem a autonomia e a vontade própria. Já nao podem deitar na cama quando querem, nem levantar quando o desejam. Passam horas diante da TV, comem coisas que nao gostam e sao obrigados a ir para a cama às 20 h. Há horário para tudo. Em certos momentos, vi pessoas amarradas por nao obedecerem as regras estabelecidas. E os familiares acreditam que seus enfermos estao muito bem cuidados. Entendi que a eficiência do centro é maior nos horários de visitas, onde tudo é sorriso e simpatia. É um grande teatro, orquestrado pelos administradores. Quando eu estava aí, como eu era estranha ao centro, denunciava o tratamento dado aos pacientes, reclamava, cobrava...a direçao fazia que se importava, as atendentes ficavam com raiva de mim, e nada mudava.
No meu regresso do Brasil, neste primeiro ano, consegui uma bolsa de estudos da Cátedra Unesco. Podia ter deixado de trabalhar com elas, se a questao fosse só financeira, pois a bolsa me permitia viver sem trabalhar, mas o afeto falou mais forte. Recebi a bolsa durante três anos e nunca deixei de estar com elas. Recentemente, para terminar a tese, pedi para ser substituída. Deixei de ver e de estar com as velhinhas diariamente, embora continue visitando as duas. Hoje mesmo estive com elas. É uma alegria vê-las, mesmo que eu saiba que elas nao têm nem idéia de quem eu seja. Mas eu sei quem elas sao!
Neste momento, Itziar já nao fala, nao anda, quase nao abre os olhos e tem os braços e as maos na posiçao fetal. Mas escuta. Sabe que tem alguém ao seu lado. Pode até tentar esboçar um sorriso ou uma fala. Ela usa sonda e, depois de algumas pneumonias e hospitalizaçoes, já nao se alimenta pela boca. Com todo este quadro, ela conserva uma boa cor e ainda se percebe uma certa energia nela. Com os anos de convivência, aprendi a reconhecer suas expressoes: de dor, de cansaço, de irritaçao, de tranquilidade, de sono profundo, de sono leve e de "me deixem em paz"...
Bego também nao anda e tem a cabeça completamente confusa. Nao reconhece mais as pessoas e nao consegue articular uma conversaçao longa, na maioria das vezes - mas reza e canta! Ela adora cantar! Da mesma forma que acontece com Itziar, reconheço bem seus olhares e nao canso de rir com sua maneira de ser e de pensar. Mesmo confusa, ela continua uma marquesa e uma figura genial.
A verdade é que esta é uma experiência que sempre mexeu muito com as minhas entranhas. É uma história que nao terminou, pois seguimos com os coraçoes enlaçados.
Nas primeiras páginas de minha tese, fiz um agradecimento a elas. Escrevi que o verdadeiro doutorado realizado neste país foi com elas. Um doutorado de vida! Aprendi muitíssimas coisas e, hoje, vejo a vida e a morte de outra maneira. Entendi o que significa envelhecer e ir perdendo, lentamente, todas as capacidades, num processo de aceitaçao do irreversível, ou do inevitável. Durante muito tempo, eu me esforcei para ser o prolongamento destas capacidades que elas iam perdendo: eu conversava sobre as horas, os dias da semana, os meses, explicava tudo o que interessava a elas, lia devagar, descrevia as situaçoes, o dia, o tempo, o vento, o calor, a chuva, os ruídos, os cheiros...
Nesta residência, além das duas irmas, conheci e acompanhei muitas outras pessoas. Perdi a conta de quantos morreram nestes anos em que estivemos neste lugar. Ri e chorei muito com eles todos. Vivi momentos de alegria intensa e momentos de grande dramaticidade.
Uma curiosidade que sempre me chamou à atençao: a quase totalidade dos pacientes que sofrem de Alzheimer pergunta pela mae. O pai, os maridos, as esposas e, inclusive, os filhos, sao personagens secundários na vida destes pacientes. A grande protagonista da vida de todos nós é a mae! Se o vínculo mais forte é o materno, visto que nunca o esquecemos, nem quando nossa memória já apagou quase tudo, atrevo-me a dizer que o cordao umbilical continua presente no imaginário de todos.
Esta é a história de um encontro incomum entre duas espanholas e uma brasileira. Independente das diferenças culturais, é um encontro de três coraçoes.